Confesso que demorei muito tempo para começar a ler Bukowski, o motivo? No meu círculo semi-social os leitores de Bukowski odeiam os Beats, consideram o “intelectualismo” de Burroughs e o zen-budismo de Ginsberg e Kerouac uma farsa/auto-enganação literariamente lucrativa. Eles cultivaram um ódio principalmente por Ginsberg e Burroughs, que foram severamente criticados por Bukowski porque misturavam “artificialmente” sua literatura com movimentos sociais, nas palavras do bêbado em “Notas de um Velho Safado”:
“Eles passeiam pelos parques com o ídolo de Che, com fotografias de Castro em seus amuletos, fazendo OOOOOOOOMMMMMOOOOOOOMMM enquanto William Burroughs, Jean Genet e Allen Ginsberg os lideram. Esses escritores ficam delicados, malucos, uns cocozinhos, umas fêmeas – não homos mas fêmeas – e se eu fosse tira eu não hesitaria em lhes cacetear os seus cérebros confusos.”
Pois bem, como já havia lido e era apaixonado principalmente pelo modo de escrita dos três beats, sendo também estudante dos movimentos sociais dos anos 60/70, criei uma barreira que me impedia de ler Bukowski. Assim como os beats pareciam artificiais para alguns o fodedor de bocetas e velho bêbado me parecia um tanto quanto canastrão, aquela pose de macho ômega e drogado que os leitores me passavam do cara me privou por muito tempo de lê-lo. Hoje em dia já pego livros do Bukowski e entendo sua grandiosidade, não exatamente literária mas de capacidade expressiva, e encontro inclusive sincronia com os próprios beats que ele tanto criticava!
Graças a Bukowski conheci a literatura de John Fante e por conseguinte chegou às minhas mãos o livro “Pergunte ao pó”. O prefácio, escrito por Bukowski, nos convence que “cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção.” E não é que a porra do livro realmente é tudo isso?
“Pergunte ao pó” nos conta a história de Arturo Bandini, alter-ego de John Fante, um escritor que só havia publicado um conto em toda sua vida e como ele enfrenta sua pobreza e sua idiotice intelectual. Um dos centros principais da narrativa é como Arturo Bandini chega a escrever suas histórias e se apaixona por uma mestiça indígena. Preconceituoso, racista, confuso, virginal, religioso Arturo entra em parafuso por causa de sua paixão por Camilla, uma relação ambivalente de desprezo, masoquismo emocional e idolatria. Sua deusa “maia” e ao mesmo tempo uma pobre mestiça que trabalha de garçonete e usa sandálias asquerosas.
A saga de um escritor buscando seu espaço no fétido mercado editorial e lutando contra os deuses da criatividade, isso resumiria porcamente “Pergunte ao pó”, um livro que pinta em tons intensos traços de pensamentos de alguém muito distante temporalmente mas que poderia ser qualquer um de nós. Um dia Arturo Bandini está pobre, no outro ganha 130 dólares por um conto e em menos de uma semana depois já está novamente fodido porque não controlou seu dinheiro. O personagem é inseguro, não tem certeza de nada que está fazendo, aliás, apenas que quer ser escritor, esta é sua única certeza.
A sinceridade com que assume suas contradições é a principal atração do livro, um trecho em especial basicamente me pediu que fosse citado:
“Não li Lenin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Falando comigo mesmo nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: li O anticristo e o considero uma obra capital.
Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A Igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatães.
Puxei a imensa porta, abrindo-a, e ela emitiu um pequeno grito como um choro. Acima do altar, crepitava a luz eterna vermelho-sangue, iluminando em sombra carmesim a quietude de quase dois mil anos. Era como a morte, mas também me fazia lembrar de bebês chorando no batizado. Ajoelhei-me.
Era um hábito, ajoelhar. Sentei-me. Melhor ajoelhar, pois a pontada aguda nos joelhos era uma distração da terrível quietude. Uma prece. Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo Poderoso, vou jogar limpo nesta questão: vou Lhe fazer uma proposta: Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o Velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém.”
O nome “Pergunte ao pó” se refere aos desertos que predominam no ambiente de Los Angeles e Califórnia. Certos momentos, quando o livro tira um pouco o foco de Arturo, o principal personagem é o deserto. Esse lugar silencioso, monótono, desolador e seco que sempre esteve presente no planeta e estará até o seu fim, homens e civilizações passaram e o deserto permanecerá. Quem sabe um dia o deserto vai dominar todo o mundo, se pergunta em certo momento John Fante, vai engolir todos os outros ecossistemas. E isso não tem a ver com poluição, camada de ozônio, não… é porque o deserto foi feito para reinar, para atrapalhar, a única coisa que é constante no mundo é a areia do deserto.
John Fante não é um bêbado e fodedor de bocetas como Bukowski, nem um santo vagabundo iluminado como os beats, mas é um escritor filho da puta e tanto. Vale muito a pena ler, embora o livro não seja regado de visões de paraísos, sexo e uso de drogas, não é uma São Francisco hipster (hippie), nem uma Nova York nojenta, mas uma Los Angeles que só existe para um individuo: Arturo Bandini, o escritor fraco e imbecil que sonha em viver de suas palavras e possuir sua princesa maia Camilla.