[Texto originalmente publicado no Navilouca]
Drácula, escrito por Bram Stoker é um livro morbidamente curioso escrito no ano de 1897, era o ápice de uma sociedade funcional, baseada na tecnocracia positivista.
O livro é o principal responsável pelo universo mítico do vampiro moderno, que sobrevive parcialmente até os dias de hoje em diversas mídias. O tom sombrio das descrições e falas quando há a presença do Conde Drácula é a principal atração do livro, além, é claro de que para grande parte dos leitores da época as informações sobre os vampiros – não poder ser visto no espelho, controlar animais, se transformar em fumaça, grudar nas paredes e super agilidade entre outras coisas – eram novidades impressionantes.
“Ficamos em silêncio durante algum tempo. Do vale, vinham os uivos de muitos lobos.
— Ouça-os… os filhos da noite — disse o Conde, com os olhos brilhando. — Que música fazem!
E, notando, sem dúvida, minha estranheza, acrescentou:
— Os senhores, habitantes da cidade, não podem compreender os sentimentos de um caçador.”
Há também a presença do professor Van Helsing, que em sua sapiência atingiu um novo patamar de ciência, misturando-a com teologia, sendo uma clara crítica metafórica do autor ao ceticismo pragmático.
“Depois de muita reflexão, resolvi escrever ao meu velho amigo e mestre, o Professor Van Helsing, de Amsterdam, que conhece mais a respeito de enfermidade desse tipo que qualquer outra pessoa do mundo. Pedi-lhe que viesse examinar Miss Westenra, e expliquei a minha interferência e seus laços com Miss Westenra. Estou certo que ele virá, pois nunca deixou de atender a um pedido meu. Aparentemente, ele é um homem esquisito, arbitrário, mas isso se dá porque sabe o que diz. É um filósofo, um metafisico, um dos mais avançados cientistas de nossos dias; e tem, estou convencido, uma mentalidade muito arejada.”
A narrativa é constituída através da organização de registros fictícios como diários, telegramas, bilhetes, notícias de jornais e memorandos em um plano seqüencial, conceito chamado de “literatura epistolar”. A sensação dada é como se o leitor estivesse acompanhando a leitura do autor através desses documentos que persistiram ao tempo.
Em anos de vampiros politicamente corretos (lindos, dispostos a morrer pela amada, cheio de frases recortadas dos livros de auto-ajuda), como os de livros entre os quais destaco True Blood e Crepúsculo, a caracterização de todos os vampiros, principalmente o de Drácula chega a ser repulsiva no livro de Bram Stoker.
“Até então, eu tinha notado as costas, de suas mãos, que tinham me parecido brancas e finas; mas, vendo-as mais de perto, pude notar que eram bem grosseiras, com dedos fores. Por mais estranho que pareça, as palmas das mãos tinham cabelos. As unhas eram compridas e finas, terminando em ponta. Como o Conde se curvasse sobre mim, encostando-me as mãos, não pude conter um tremor. Talvez tenha sido por causa do seu mau hálito, mas o fato é que me dominou uma horrível sensação de náusea, que não pude esconder. O Conde notou-a, evidentemente, e recuou; e com uma espécie de sorriso que deixava ver melhor seus dentes salientes, sentou-se, de novo, do outro lado da lareira.”
O romance gira em torno de uma caçada que constantemente muda de sentido. Em certos momentos o Conde é o caçador e em outros ele não passa da caça dos mortais, sedentos de ver seu corpo destruído.
Como toda criação humana, o livro de Bram Stoker está relacionado com a sua época. Ele nos apresentam acidentalmente uma sociedade muito diferente da nossa, na qual a mulher não pode, por exemplo, se sentir mal pela morte de outro homem que não fosse o seu marido. Uma sociedade que tenciona as pessoas a se manterem “normais” acima de tudo. São vários os momentos do livro em que os personagens se questionam se estão ficando loucos. Sendo isto uma clara evidência de que estavam rompendo com a tradição de seus semelhantes.
“DIÁRIO DO DR. SEWARD
Que significa tudo isto? Estou começando a imaginar se não estarei também ficando louco, de tanto viver entre loucos.”
Sendo uma sociedade do final do século XIX, ainda estava sob o efeito das asas de um positivismo empirista que tirava de seu circulo de interesse qualquer coisa que não pudesse ser esquematizado para estudo.
O personagem Van Helsing, como já foi dito anteriormente, é uma crítica a essa organização social em que os cientistas diplomados acham que conhecem a realidade em sua totalidade e tem o último veredito quanto ao que é a verdade. As pessoas comuns não têm liberdade para descrerem do conhecimento científico, pois esse saber pragmático é que trouxe as luzes contra a escuridão teológica medieval, é a luz da razão que vai levar a humanidade em direção ao paraíso através de suas descobertas. Fato que foi desmistificado e duramente criticado principalmente após as Guerras Mundiais.
Van Helsing representa uma ruptura intelectual, ele um cientista que em meio ao positivismo é metafísico. Trecho de uma conversa entre Dr. Seward e Dr. Van Hellsing:
“— Está querendo dizer, amigo John, que não desconfia do que a desventurada Lucy morreu?
— Foi em conseqüência de uma prostração nervosa, produzida por grande perda de sangue.
— E a perda de sangue por que foi causada? Você é inteligente, mas tem muitos preconceitos. Não acha que existem coisas que não podemos compreender, mas que existem? Que algumas pessoas vêem coisas que os outros não podem ver? Existem coisas velhas e novas que não podem ser contempladas pelos olhos dos homens, porque eles conhecem algumas coisas que os outros lhes disseram. Nossa ciência não pode explicá-las e, então, diz que não há nada a explicar. Creio que você não acredita na materialização, nem na transmissão de pensamento, nem no hipnotismo…
—O hipnotismo foi perfeitamente provado por Charcot — observei.
— Quer dizer que acredita nele — disse Van Helsing sorrindo. — Mas, então por que não acredita na transmissão de pensamento? Vivemos rodeados de mistérios. Quero lembrar-lhe que existem coisas feitas hoje pela ciência da eletricidade que teriam sido consideradas absurdas pelos próprios homens que descobriram a eletricidade e que, por sua vez, teriam sido, outrora, queimados como feiticeiros. Ninguém descobriu ainda o mistério da vida e da morte. Você poderá dizer por que a tartaruga vive mais que gerações de homens e que o papagaio não morre, a não ser por mordida de cão ou gato ou coisa semelhante? Nós todos sabemos que tem havido sapos que viveram em rochedos durante milhares de anos. Quero que você acredite em coisas que não pode acreditar. Um americano deu a seguinte definição de fé: “a faculdade que nos permite acreditar em coisas que sabemos, não serem verdadeiras.” Quero que você compreenda o que estou querendo dizer.”
Dr. Sward tenta explicar racionalmente como Lucy morreu pela perca de sangue. Van Helsing tenta mostrá-lo que há coisas que estão além do conhecimento científico “moderno”. Atenta para o fato de que existem outras formas de experiências que podem ser tão valiosas quanto aos dados empiristas.
“Os antigos médicos atentavam para coisas que seus sucessores não aceitam e o professor está procurando tratamentos para bruxas e demônios, que podem nos ser úteis mais tarde.”
O que temos aqui é um caso em que a literatura serve como um ataque à realidade convencionada e domesticada. Foucault em “Vigiar e Punir”, comenta que a sociedade tenta prescrever suas normas nos indivíduos através da educação, mídia, entretenimento, etc. Essa prescrição se trata de ensinar ao indivíduo aquilo que ele pode ou não fazer; aquilo que ele deve ou não querer; como ele vai agir sem ser punido; simplificando, prescrever é aprisionar o ser humano em sua mente, limitando seus sentidos através de assimilações culturais predominantes. Qualquer pessoa fora desse circuito é um “estranho” dentro da sociedade, é um outsider que ignora o que a sociedade considera sagrado. Esse tipo de outsider é o vampiro que Bram Stoker nos apresenta, ele desafia a sociedade humana com outro estilo de vida.
Ele acorda na madrugada, o oposto dos mortais. Sua vitalidade depende de sangue humano, negando o valor cristão da vida e do sangue de Jesus. Não se vê no espelho, não tem motivos para se preocupar com estética. É egoísta, megalomaníaco, se considera capaz de tudo, tem auto-confiança mesmo nas piores situações. Faz todos os seus atos infringindo a lei dos mortais, IGNORANDO a ética… o Drácula de Bram Stoker é um exemplo daquilo que Hebert Marcuse considerava a “grande recusa” na arte, é uma arte baseada na cultura negativa.
Do que se trata isso? De uma arte que não seja necessariamente panfletária, mas crie possibilidades fictícias de viver no mundo, que ignore a tradição em seu próprio universo e por isso acabe sendo libertadora dos sentidos, pois dá uma opção de atitude para se confrontar dialeticamente com a sociedade real. Através disso as pessoas podem se indignar com sua situação banal e tirar a bunda da cadeira em busca de liberdade.
A cultura negativa é a incorporação do preceito de tradição de ruptura, romper com as convenções de hoje através da literatura visando a libertação da consciência, que ocasionaria posteriormente na libertação do individuo e em último estágio libertação comunal.
O que vemos em obras atuais como Crepúsculo e True Blood, é que os vampiros centrais deixaram de ser esse ser que dá alternativa de vidas ficcionais que desafiam o modo tradicional, para serem monstros que batem nas portas da sociedade em busca de inclusão. ELES QUEREM IGUALDADE. Isso é a principal cartada da série televisiva True Blood. Os vampiros estão cansados do preconceito que sofrem por parte das bolsas de sangue ambulante (humanos) e resolvem se deixar ver pelo mundo dos mortais, eles buscam serem iguais aos humanos através das instituições judiciais comuns.
Há uma perca da força negacionista do vampiro, agora ele passa a ser mero invejoso das normas humanas. Esse tipo de obra faz parte da “cultura afirmativa”, conceito que engloba a cultura que enaltece as crenças, normas e moral de uma cultura tradicional. Elas apenas acrescentam valor à essa cultura.
Que Drácula é parte da cultura negativa é tão evidente, que em um diálogo entre um paciente louco do sanatório do Dr. Seward e o próprio doutor, o louco mostra toda sua capacidade sistemática, desafiando o conceito de loucura:
“De novo fiquei assombrado, pois ele respondeu com a imparcialidade de uma pessoa mentalmente sã.
— Eu mesmo sou o exemplo de um homem que tive uma estranha crença. Não é de admirar que meus amigos tenham se alarmado e tratado de me colocar sob vigilância. Convenci-me de que era possível prolongar indefinidamente a vida consumindo uma multidão de seres vivos, por mais baixos que fossem na escala da criação. Algumas vezes, acreditei com tal convicção que tentei matar. O doutor pode confirmar que, certa vez, tentei matá-lo, a fim de aumentar minhas forças vitais pela assimilação em meu corpo da sua vida, através do sangue, baseando-me, naturalmente, na frase das Escrituras “Pois o sangue é a vida”. Na verdade, o vendedor de certas panacéias vulgarizou o tratamento até o ponto de se tornar desprezível, não é mesmo, doutor?”
O paciente na verdade era vítima de Conde Drácula e acreditava que engolindo moscas, aranhas, pardais, gatos e seres humanos, era capaz de viver eternamente.
O que concluo é que ocorreu um refluxo histórico em relação aos personagens de ficção em geral, o vampiro aqui não passa de um mero exemplo. Frankenstein, um personagem que representa uma ruptura crítica ficcional da ciência assim como o personagem Van Helsing, se tornou uma espécie de “patinho feio” no teatro contemporâneo para ser contado às criancinhas como exemplo moralista de que as pessoas devem ser incluídas na sociedade. Esse refluxo fez uma reformulação dos monstros, símbolos do bizarro, estranhamento e ruptura, os transformando em mendigos da igualdade, seres que ao contrário de negarem os valores “sagrados” da humanidade, agora pedem para fazer parte da comunidade global como apenas mais um. Os monstros agora são apenas anônimos nos dias de hoje, já que “todo mundo é diferente”. É como se fosse a morte das personalidades individuais acontecendo diante de nossos olhos.
Não quero aqui dizer que não deve haver políticas ou arte em busca da igualdade entre os seres humanos. Não, claro que devem haver, mas enquanto na literatura e na política se falarem sempre da mesma coisa, é porque tem algo errado. Essa igualdade tem que ser avaliada, pois quase sempre é um Trojan Horse no nosso sistema operacional mental. Meu intuito aqui foi salientar que a crítica negativista da ordem social vingente morreu, seus símbolos literários foram digeridos e transformados em lanches do McDonald’s. Perderam sua força crítica, se tornaram em geral meros produtos de consumo PER SI. Para usar as palavras de Marcuse, ainda na década de 60:
“A mulher vampiresca, o herói nacional, o beatnik, a dona de casa neurótica, o gangster, o astro, o magnata carismático desempenham uma função muito diferente e até contrária de seus predecessores culturais. Não mais a imagem de outro estilo de vida, aberrações ou tipos da mesma vida, servindo mais como afirmação do que como negação da ordem estabelecida.”
Esse quadro se tornou mais forte. E a arte que antes subvertia a experiência cotidiana, em busca de frestas de desconhecido na realidade, agora se curva diante da vida ordinária pedindo para ser como ela.
Finalizo esse texto com a última frase do próprio livro, dita por Van Helsing, que não deixa de ser uma negação do valor empirista da ciência de sua época:
“— Não precisamos de provas; não pedimos a ninguém que nos acredite! Este menino saberá, algum dia, como sua mãe foi valente e corajosa. Já conhece sua dedicação e carinho; mais tarde, há de saber como alguns homens a amaram tanto que se atreveram a tais coisas para sua salvação.”