Se por acaso um dia você perguntasse quais desenhos japoneses marcaram minha infância, eu temo que minha resposta fosse um pouco atípica em relação as suas expectativas, eu iria responder o seguinte: “Gundam Wing, Patlabor e Sakura Card Captor”. Embora os dois primeiros tenham lá seu status de cult, para as audiências brasileiras eles foram considerados programas chatos e confusos, de pouco apelo na programação, ainda mais se lembrarmos que na época, as transmissoras investiam pesados nos hits como Dragon Ball Z e Pokémon, como eu não tinha o pacote de assinatura que liberava o extinto Locomotion e a realidade da banda larga e dos torrents subbados parecia algo distante, eu tinha que me contentar com o que via…
Mas ai você vai dizer: “ei, espera ai, e Sakura?” Bom amigo, ai a coisa é diferente, o desenho tinha um traço mais fluido, uma animação mais recente em comparação ao que tinha sido exibido por aqui. A gente poderia discorrer sobre vários aspectos semióticos da qualidade da obra, mas eu gostaria de resumir em uma coisa: “novidade”. O enredo em si é interessante, a protagonista Sakura Kinomoto descobre um livro, e nele desperta uma série de cartas mágicas que se espalham pela cidade, com a ajuda de um guardião sobrenatural, a mesma é incumbida de resgatar todas e evitar uma potencial catástrofe.
Os coadjuvantes também ajudam a enriquecer a trama, em maioria pertencendo a rotina escolar de Sakura, nós observamos o desenvolver de triângulos amorosos, paixões platônicas, relacionamentos homossexuais ou apenas romances, embora em seu sentido mais idílico. É um ponto que eu discuto muito com outros fãs do mangá, o fator “idílico”, então, por motivos de spoilers, dissertarei sobre a questão no próximo parágrafo.
Tomoyo, a “BBF” da Sakura, conhece sua identidade secreta e acompanha a amiga nas aventuras, filmando elas – um aspecto, digamos, voyeur – com diversos trajes confeccionados por ela também – e ai a gente vê um fetichismo por maids, lolitas e assim vai… – mais tarde na trama nós descobrimos que ambas possuem um parentesco distante, primas de terceiro grau, o que, dependendo do critério de quem olha, pode ser considerado algo incestuoso, e sabe qual é a idade delas? 10 anos. Pois é, esta forma branda de “homossexualismo” (se é que podemos chamar assim…) é recorrente na trama, o irmão de Sakura, Touya, muitas vezes sugere que possui algo-além-do-bromance com seu amigo Yukito, que por sua vez, é a paixão de Sakura. Sim amigos, muitos triângulos amorosos, todos intricados e complexos.
Como adultos experientes nessa vida, nós poderíamos abordar pelo ângulo simples, Sakura e Tomoyo estão confusas, faz parte do “amadurecimento” psicológico delas, os mais velhos, como Touya, devem estar passando pelos primeiros questionamentos envolvendo a própria sexualidade, mas o meu ponto é: precisamos olhar por este ângulo? Card Captor Sakura é uma produção dos estúdios CLAMP, um grupo de mangakás formados por quatro moças, que embora já tenham trabalhado com diversos gêneros e faixas etárias, sua especialização é aquilo que chamamos de Shojo.
Shojo pode ser traduzido como “Menina”, ou “Pequena Garota”, e são histórias focadas no público feminino adolescente, geralmente contando romances e histórias de relacionamento, o traço costumo ser suave, propositalmente delicado, e seguindo conceitos estéticos e sexuais, a presença de andrógina (também considerada, mas não limitada ao termo “Bishonen”) é algo recorrente, e em muitos casos, a situação é idílica, comumente rumando para um “todos viveram felizes para sempre”, típico dos contos de fada.
Contos de fada é um termo que define bem Card Captor Sakura, sendo pertencente ao subgênero mahou shoujo (“garota mágica”), não é algo incomum para o público brasileiro, que acompanhou duas vezes Sailor Moon e agora pode encontrar inúmeros títulos em qualquer banca de jornal ou Loja de HQs, porem a construção do aspecto místico na trama de Card Captor Sakura é digna de comentário, referências a magia hermética, espíritos (a “magia” das cartas são os kamis do shintô? Os elementais de Paracelso? Aqueles espíritos Astecas que habitam objetos inanimados que Grant Morrison mencionou em Kid Eternity?), a natureza das cartas, seriam elas sigilos ou uma referencia sutil ao tarô? (coisa que foi mais bem explorada em outro título, X-Japan) a própria “arma” da protagonista, o báculo mágico, é uma referência a seres da mitologia grega, comumente associados com o ocultismo, como Hermes e Esculápio.
O aspecto “idílico” da trama é que me interessa, da mesma forma que no passado eu defendi que era necessário encarar de mente aberta animes que faziam apologia a violência, conteúdo pornográfico e outros temas controversos, acredito que o inverso também é válido, cabe o espectador se esforçar para entender o universo da trama de Card Captor Sakura, e que aquilo não é real, ou ao menos não segue a mesma moralidade da nossa realidade cotidiana.
Em um dos casos mais famosos, graças a um alarde desnecessário por parte da imprensa japonesa, foi no episódio que o professor da Sakura, Yoshiyuki, presenteia sua aluna Rika Sasaki, com um anel de noivado, tamanha polêmica fez com que a adaptação para anime omitisse completamente essa parte da trama.
Este tipo de romance é recorrente na trama, onde da mesma forma que em títulos masculinos ou polêmicos, o leitor pode experimentar uma fantasia de poder ou sexo comumente masculina, porque não livrar o mesmo mundo daquilo que, por falta de termo, só poderia ser considerado “malicioso” ou “imoral”? Porque não se livrar disto tudo e aceitar a ágape. A proposta do CLAMP é justamente essa.
(O que também, acaba deixando muito relativo o debate Seinen/Shojo)
E é essa “mágica” (em vários sentidos…) do universo da série que importa, onde até certos relacionamentos são pautados na natureza sobrenatural de alguns personagens (principalmente quando envolvem Yukito) o sentimento de estranheza que é calcado na cabeça dos espectadores é digno de nota, muitas vezes um alívio comovente, como se algo tivesse dado certo, não importando os limites do nosso mundo.
E no final das contas, graças a Card Captor Sakura, uma nova geração de fãs foi formada no Brasil, pavimentando para as editoras todo um leque de oportunidades no qual hoje podemos desfrutar de uma variedade de títulos, sejam eles mágicos ou não.