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O Falo tentacular: sexo bizarro e ocultismo no legado de Lovecraft

Atenção: a única coisa realmente obscena neste post são as quantidades de spoilers sobre um monte de coisas, leia com sua própria conta a risco

Em 1814, o artista Katsushika Hokusai concebeu o ukyo-e “Tako to ama”, conhecido posteriormente no ocidente como “O Sonho da Mulher do Pescador”, a xilogravura retratava uma mulher japonesa, de ventre nu, tendo relações sexuais com dois polvos (tako). a mulher em questão era uma mergulhadora “ama”, recorrente no Japão, são grupos de mulheres que mergulham com o mínimo de equipamento em busca de pérolas e frutos do mar, o fato de serem mulheres tem haver com uma crendice popular japonesa, onde se fala que a “gordura” do corpo feminino é melhor distribuída, garantido assim, uma maior conservação do calor durante os mergulhos.

A gravura pertencia ao gênero Shunga, popular entre os japoneses, era comum o Shunga retratar o imaginário sexual de forma fantasiosa e simbólica: genitálias de tamanho exagerado, botão de flores crescendo para representar uma ejaculação.

O interessante era perceber como o Shunga era bem quisto pela mentalidade feudal, servia como guia sexual para famílias mais abastadas (lembrando, em alguns pontos, o próprio Kama Sutra), era considerado um objeto supersticioso, trazendo zelo e boa sorte para estabelecimentos que os contêm.

Isto abre uma brecha para interpretamos o Shunga como um objeto canalizador de “orgônio”, considerada pseudociência, o orgônio é a energia primal contida em nossos corpos, muito similar ao Prana ou Chi, ela é liberada através de estímulos físicos/sexuais – orgasmo – catarse e satisfação da libido.

O imaginário fálico do tentáculo foi concebido na cultura pop japonesa pelo manga-ká Toshio Maeda, em seu “Yōjū Kyōshitsu” (Demon Beast Invasion), alienígenas planejam invadir a terra, reconhecendo que o planeta possui uma atmosfera hostil, eles elaboram um plano para engravidar a população nativa  e criar uma raça hibrida que reinaria o planeta ao desígnio dos invasores.

A idéia de Toshio era burlar a censura japonesa, que proibia a retratação de genitálias em seus meios de comunicação, em entrevista, o mesmo comentou:

Na época, era ilegal criar uma cena de sexo na cama, eu pensei que devia fazer alguma coisa para evitar desenhar tal cena erótica. Então eu criei essa criatura, seu “tentáculo” não é um “pênis”, eu poderia dizer, como uma desculpa, que isto não é um “pênis”, é apenas parte da criatura, e você sabe, essas criaturas não tem gênero (sexual). Então se não é obsceno, não é ilegal”.

(se você se interessar pelo assunto de Hentai, Ecchi, Mangá, Eroge e etc., eu já dissertei sobre erotismo na cultura pop japonesa em um post no meu antigo blog, aqui

A idéia de fazer uma conexão retroativa com a gravura de “Tako to Ama” é apenas por uma questão de coincidência histórica, não podemos dizer que uma influenciou a outra, as próprias motivações são diferentes e fazem jus as mentalidades de suas respectivas épocas.

Nos contos de H.P. Lovecraft, tentáculos eram utilizados para retratar algo “não-humano”, ao invés de uma descrição objetiva, os deuses e criaturas ancestrais que assombravam a humanidade eram massas disformes, com pseudopodes, falsos membros e tentáculos, sem a vaga noção de humanidade reconhecível, seja física ou mental. Em um dos seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu”, a criatura homônima ao texto não é dada uma descrição válida, recorrendo a expressões como “a prole verde das estrelas”, “uma caricatura simultânea de polvo, dragão e humano”.

Ao contrário da mentalidade dos escritores japoneses, o erotismo na literatura de Lovecraft era quase nulo, se distanciando do platonismo doentio de suas inspirações como Poe e Byron, os contos de Lovecraft retratavam o sexo, embora deturpado, em sua visão mais puritana, como forma de acasalamento e propagação da prole, tal dita “frigidez” até hoje é motivo de debate entre fãs e acadêmicos quanto a orientação sexual do escritor.

Porem, um dos temas recorrentes em seus contos é a “hereditariedade maldita”, no conto “A Sombra sobre Innsmouth”, o narrador anônimo, aos poucos descobre sua ligação com um culto pagão (“A Ordem Esotérica de Dagon”) na cidade de Innsmouth, cuja as lendas envolviam acasalamento com monstros marinhos, ao final da história, o choque de descobrir ser descendente da mesmas criaturas – conhecidas como “Deep Ones” – que outrora abominava é mitigado a partir de sua transformação, aceitando sua condição pós-humana e cogitando ir morar em cidades subaquáticas.

Este tipo de niilismo é uma retórica comum para Lovecraft, no auge das descobertas, do colonialismo na África e na Ásia, o destino manifesto ocidental se iludiu da hegemonia sobre o mundo e as ditas “culturas inferiores”, os contos subentendiam duras críticas a mentalidade pretensiosa do homem daquela época.

Para o narrador protagonista de “A Sombra sobre Innsmouth” aceitar sua nova condição significava expandir o seu consciente, entender que há mais no mundo que nos acreditamos, bactéria de arsênico, saca?

É interessante dizer que o mesmo Dagon que inspirou o conto de terror, foi em nossa história ancestral um deus da fertilidade da mitologia Cananéia, este tipo de deturpação era comum na mitologia fictícia criada por Lovecraft, Derleth e seus colegas, outra criatura, Shub-Niggurath, é retratada como uma figura feminina e seu título é “A Cabra negra do bosque com centenas de crias”, Lovecraft, em correspondência, traça analogias com deusas da fertilidade como Astarte e Cibele.

Sendo que Shub-Nigurath é uma das criaturas de Lovecraft que mais se aproxima do imaginário religioso judaico-cristão, a figura do bode associada a Baphomet, cujo rumores indicavam no passado ser cultuado por grupos de mulheres pagãs.

Recentemente eu comecei a ler “Neonomicon”, da Avatar Press, escrito pelo Alan Moore e desenhado pelo Jacen Burrows, a proposta da HQ é uma modernização da Mitologia de Cthulhu, porem, a partir desta premissa, Moore abre espaço para conduzir algo muito mais nefasto.

A própria HQ brinca com seus sentidos – da mesma forma, talvez, que Cthulhu influenciava indivíduos através de sonhos – porem nossa ingenuidade c/ o hábito de leitura de quadrinhos faz com que isso passe desapercebido, se a idéia era com que as abominações imaginadas por Lovecraft se escondessem nas profundezas do planeta, Morre e Burrows fazem com que o leitor participe desta “descida”.

Cada quadro movimenta a história para baixo, desenvolvendo a narrativa através de corredores, sótãos, brincando com profundidade e distância, tirando as personagens da zona de conforto, trazendo-os para perto da incompreensão, a série de vídeos, disponíveis no Youtube, chamados “Breaking the Fourth Panel: Neonomicon and the Comic Book Frame” explica a malícia metatextual por trás dos criadores da série.



Nas edições seguintes, descobrimos que os protagonistas estão envolvidos com o Culto de Dagon, durante um diálogo os mesmos questionam da suposta sexualidade reprimida de Lovecraft.

A trama se intensifica a partir do momento que uma das protagonistas, cujo historio psicológico sugere ninfomania, sofre um estupro coletivo pelo próprio culto, um dos cultistas menciona que as “criaturas” são, de fato, atraídas por energias orgônicas.

A criatura invocada em questão, nada mais é do que um Deep One, do conto “A Sombra sobre Innsmouth”, e é aqui que Moore e Lovecraft entram em conflito, se para o último, a moralidade das criaturas era tão alienígena que para nós, reles humanos, só podia ser interpretada como “vil”, o Deep One de Moore – cuja silhueta é extremamente fálica – é uma criatura, um “animal” sob a concepção humana, cuja necessidade sexual não difere muito de uma cadela no cio, cuja moralidade anormal é a mesma que leva um leão a devorar o próprio filhote, ou seja, puro instinto.

Este é o legado de Lovecraft, entre sexo bizarro e ocultismo, em sua própria retórica anti-racionalista, pode questionar a noção de “depravação”, pois, quando lidamos com uma criatura de base moral tão superior a nossa, como entender que aquilo é algo vil ou deturpado? Que a angústia de inúmeros protagonistas nada mais é do que a necessidade de encarar seus inúmeros grilhões, da mesma forma que Neonomicon trabalha inúmeras “camadas” da realidade, para o fatalismo de Lovecraft, não vamos acabar apenas encarcerados em hospícios, mas também em nossa própria consciência…