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Fator Caos: Mitologia Grega

[Esse é o primeiro texto de uma sequência que chamarei de “Fator Caos: Na Mitologia X”, onde analisarei a função do Caos em algumas mitologias]

Em alguns períodos na vida de qualquer ser humano, tudo parece sem sentido. As pessoas na rua, a posição aleatória das árvores, prédios, pedras jogadas no chão, rios, o sistema planetário, a distancia entre as cidades, a forma absurda que as gotas de chuva caem, enfim, tudo parece arbitrário, sem organização, jogado de qualquer forma… as nossas próprias vidas ficam resumidas a uma série de acidentes temporais/espaciais, em que um fator aleatório de acontecimentos nos leva até onde chegamos. Simples e puramente acidentes, que não tem significado especial, que não são nada. Algumas pessoas atravessam esse período se apegando a filosofias, religiões e/ou ciência, já outras permanecem céticos até o fim, sendo os verdadeiros “ateus” existenciais.

Esse fator aleatório que aparentemente não tem qualquer sentido é o que chamo de fator Caos (geralmente uso o epíteto Kaos do Jorge Mautner, dessa vez deixarei normal). A palavra “sentido” no Dicionário Aurélio Online significa: S.m. Faculdade de receber impressões externas por meio de órgãos sensoriais: o sentido da visão. / Faculdade de sentir ou perceber: o sentido divinatório. O Caos certamente está relacionado com os órgãos sensoriais, tudo no ser humanos está, no entanto não se limita a isso – os órgãos sensoriais têm a ver com o mundo material, limitado – e nem a uma percepção de estático, parado, o Caos é mais condizente com uma palavra similar: extático – imprevisível, metafísico e transcendente. É uma “ordem” que não é hierárquica nem racional, por isso não cabe na palavra “ordem”, nem na palavra “sentido” porque nos leva a algum lugar, mas não a um lugar definido e certo – um paraíso, ou redenção final das almas-, apenas nos leva sempre a algum lugar dinâmico qualquer. O Caos é o princípio da vida.

Somos um acidente químico, mesmo se formos uma criação divina esse fato não deixa de ser aleatório. Porque nós? Porque não outro tipo de espécie? Outro tipo de evolução? Porque Deus não criou outras criaturas ao avesso da humana? Porque fomos dotados dos nossos dotes racionais? Porque aquela molécula de hidrogênio se fundiu com outra criando a vida? Perguntas irrespondíveis mesmos em termos científicos. Aliás, perguntas que se respondidas primariamente pela nossa mais sostificada ciência apenas vai abrir mais uma série perguntas, estas cada vez menos passíveis de respostas. A ciência pode repetir o processo de criação da vida, mas não entende porque ele ocorre daquela forma e não de outra, simplesmente acontece e isso basta. Pode se entender o mecanismo de funcionamento de algo – ou como se formou no tempo/espaço-, no entanto ainda fica um ar de “acidente” biológico. Os cientistas mais equilibrados nem mesmo tentam responder tais perguntas, eles estão mais preocupados com transformar aqueles dados em privilégios práticos/dominação das aparentes dificuldades presentes.

Na sociedade contemporânea o sentido iluminador e transcendente do Caos foi esquecido, provavelmente pelo desenvolvimento científico que colocou a metafísica em oposição direta ao materialismo! O Caos se tornou uma espécie de niilismo radical, sem propósito em si, apenas uma busca do nada. Existem alguns grupos mágico/existenciais que tentam retomar o caminho do Caos, entretanto esse caminho deve ser traçado sozinho e não por bulas, claro que indicações são imprescindíveis, apenas indicações e não receitas de como se chegar a alguma lugar! Até porque não há lugar a se chegar…

O Caos não pode e nem deve ser considerado como uma percepção moderna do mundo tal como o Ateísmo – que só se tornou vigoroso pelo mesmo motivo que levou a derrocada metafísica do Caos. Os gregos, escandinavos, budistas entre tantos outros povos de vários tempos falam dele!

No começo da Teogonia, texto em que Hesíodo descreve toda a genealogia dos deuses gregos, o poeta canta:

“Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também

Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,

dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,

e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,

e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,

solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos

ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.”

No começo era o Caos, o vazio primordial! Dele surgiram todos os outros deuses. Nessa versão do poema isso não fica claro, no entanto Gaia (Terra) e Tártaro (escuridão primordial) surgiram por uma espécie de mitose do Caos. Digamos que o Caos era contraditório e baseado num principio de não-existência que existe, então dessa fissura surgiu Gaia e Tártaro (lembrando que Caos é algo como: cisão, divisão, corte, rachadura, separação). Quanto a Eros, na versão de Hesíodo nasce com os deuses primordiais, porém existem versões no qual Eros é filho de Afrodite com Zeus ou Hermes ou Ares. O papel de Eros parece ser uma versão sexualizada da criação, já que Caos não possui sexualidade. Se discute muito hoje se Gaia, Tártaro e Eros seriam na verdade “irmãos” e não “filhos” do Caos. Particularmente considero isso uma discussão errônea, Gaia, Tártaro e Eros não são filhos nem irmãos do Caos e sim uma força propulsora no cosmos que partiram do Caos e seguiram suas próprias direções! Já numa segunda fase, do Caos surgem como “filhos” Nyx (Escuridão dos Céus) e Érebus (Escuridão das Profundezas) que também surgiram por mitose, daí pra frente Caos passa a ser pouco mencionado. Sua função primordial parece ser dividir, fissurar, rachar e negar a existência para criar elementos do cosmos. Tudo surge do Caos (mesmo que ele seja a não existência), e ele passa a agir pouco em sua desajeitada criação (não consciente).

Um exemplo da mitologia grega que considero um retorno da ação do fator Caos é o surgimento de Tifão. A criatura com 100 braços horrendos com aspecto de serpentes, cujos braços eram da extensão de todo oriente e ocidente, que fazia seu grito apavorante ecoar bem mais alto que o próprio Olimpo (morada dos deuses) era cria da união entre Tártaro e Gaia (duas criaturas surgidas diretamente do Caos!). Gaia ajudou Zeus a derrotar Cronos, (na conhecida Titanomaquia = guerra dos Olimpianos contra os Titãs), no entanto depois ficou arrependida e quis vingar a derrota dos Titãs (seus filhos) pelo deus do Olimpo, criando Tifão.

Tifão escalou o monte Olimpo para enfrentar os deuses, aos quais desprezava profundamente. Ao saberem que a criatura aterrorizante buscava destruí-los, os deuses Olimpianos se transformaram em animais e fugiram para o Egito! (Hera se metamorfoseou em vaca, Apolo em falcão, Ares em peixe, e etc. só Athena permaneceu humana, e até o grande Hércules fugiu! Esse é o motivo através do qual os gregos toleravam os egípcios, acreditavam que os deuses misturados com animais que os mesmos cultuavam, eram os deuses fugidos do confronto com Tifão). Zeus se escondeu no Monte Cássio, onde acabou enfrentando corpo a corpo Tifão, que após uma intensa luta em que foi ferido pelos raios do senhor dos deuses conseguiu desarmar e vencer Zeus! Tifão é pelo que conheço a única criatura que chegou a derrotar Zeus, cortando os tendões das suas pernas e outros músculos, o deixando imobilizado e sem seus raios. Vitorioso a horrenda criatura escondeu os despojos do corpo de Zeus numa pele de urso que deixou sob proteção do dragão Delfine. Então os deuses do Olimpo se reúnem e resolvem fazer alguma coisa, afinal, só Zeus tem poder suficiente para derrotar a criatura e está com o corpo preso na Cilícia numa gruta chamada Corícia. Pã e Hermes armam um plano através do qual conseguem recuperar os tendões e raios de Zeus. Pã com sua cantoria atraiu tanto Delfine quanto Tifão, e Hermes com sua velocidade e astúcia recuperou os tesouros dentro da pele de urso, tratando logo de devolver ao senhor do Olimpo.

Zeus recuperado e de posse de seus raios lança uma chuva de raios sobre Tifão e as criaturas arrepiantes que ele havia trazido a luz do dia. Por um tempo Tifão se esconde no monte Nisa, onde as Moíras o enganam, fazendo com que perca parte de sua energia. Então enquanto arremessava montanhas em Zeus, Tifão atingido violentamente pelos raios do deus. No momento em que estava no topo da montanha Hêmon na Trácia, Tifão foi atingido ferozmente pela chuva de raios de Zeus, que finalizou o combate jogando a montanha Etna sobre a criatura horrenda, de onde jamais conseguiu sair. Até hoje o monte Etna lança lavas vulcânicas, vinda do sangue da criatura derrotada por Zeus, que ainda jorra.

Assim como Cronos havia recuperado a ordem cósmica do arbitrário Urano, castrando seu órgão genital, Zeus representou uma derrocada dos valores titânicos estabelecidos por Cronos, que mesmo sendo pai do tempo negava a mudança constante advinda do cosmos primordial, o próprio Caos. Zeus com seus irmãos haviam derrotado a velha ordem! Agora o próprio Zeus, que recuperou o cosmos do Caos na Titanomaquia, representava um sistema de valores definitivo, que se negava a ser desmantelado. A manifestação de Tifão no cosmos parece uma ação do agente das forças primordiais (fator Caos), que desaprovava a atitude prepotente e arbitrária do senhor do Olimpo. Tifão desafiou e venceu Zeus, porém, em uma reviravolta o Caos foi provisoriamente derrotado, dando mais tempo ao reino do senhor dos raios.

Não vamos esquecer que há uma profecia que se desenvolve no nascimento de Athena. Zeus consultou oráculos, que garantiram que caso tivesse uma filha, esta se tornaria mais forte que o pai. Zeus engoliu Métis, para impedir que a criança nascesse. Quando passou o período da gravidez normal Zeus começou a se sentir mal, com dores de cabeça e pediu a Hefestos que abrisse sua cabeça, de onde a deusa Athena surgiu já com armadura e lança! Dessa maneira, Zeus não conseguiu impedir o nascimento daquela que vai lhe derrotar, e a mesma Athena ainda não é forte o suficiente para vencer seu pai. Zeus zela pela sua filha justamente na esperança de que a profecia nunca se cumpra…

No próximo post (algum dia nesta vida): Caos na Mitologia Escandináva.