Antes, uma pequena curiosidade mórbida, o bairro paulistano conhecido como “Liberdade” tem este nome devido a uma pequena ironia na época do Império, as redondezas do bairro eram conhecidas pela população como um campo de forca, onde escravos e dissidentes eram executados na forca, então para muitos, aquele era o único meio para alcançar a derradeira liberdade, não é a toa, que a Igreja próxima a estação de metrô é chamada de “Igreja dos Enforcados” e até hoje existem lendas sobre assombrações e espíritos no local.
O legal é que o bairro da Liberdade, de uma forma ou outra, agrega um contraste na tradição de emancipação e repreensão, para entender o último episódio, talvez seja interessante, ilustrar um pequeno contexto.
Antes de 1912, ou seja, antes do Kasato Maru, o Bairro era predominantemente português, sobre a paisagem cultural do bairro, a ocorrência de sobreposições e atritos sempre foram fenômenos comuns, primeiro os portugueses, então os japoneses, chineses e agora a imigração coreana, dos folclores tradicionalistas para a explosão do pós-moderno superflat, do acarajé ao lado do gyoza.
Com o boom da internet, a comunidade de apreciadores da cultura japonesa – com um foco no anime e mangá, principal vetor memético pra uma geração inteira – tornou-se mais articulada, e, com tantos fóruns e redes sociais do início da web 2.0, foi uma questão de tempo até alguém marcar um encontro lá.
Um dos pontos mais famosos é uma pequena praça que existe logo na saída esquerda da estação do metrô, era comum nos finais de semana encontrar uma população heterogênica da fauna adolescente paulistana: punks de boutique, otakus, estudantes de artes marciais, V-K, góticos, headbangers, todos ali, fazendo uma cena capaz de escorrer uma lágrima no puto olho do Maffesoli.
Não é a primeira vez que o bairro serve de ponto de encontro para interesses em comum, na década de 70 houve uma proliferação de salas de cinemas, como o consagrado Cine Niterói, fundado por Susumu Tanaka, tais salas eram destinadas apenas à exibição de filmes japoneses, por muito tempo, tal circuito foi tão importante para o bairro quanto os restaurantes ou lojas especializadas.
(vale notar que muito desses cinemas hoje estão abandonados e em casos mais drásticos, em ruínas, ou até pior, tiveram sua estrutura aproveitada para Igrejas Evangélicas…)
O Bairro então, seja pela cultura ou pela presença das pessoas, nunca esteve morto, podíamos encontrar esses moleques – e alguns nem tão moleques assim… – bebendo cerveja, lendo HQs e mangás, comprando DVDs pirateados e logo acima, tínhamos a feira de final de semana, com comidas orientais e muamba artesanal, assim como as associações, promovendo cultura e festivais.
O lugar sempre teve contrastes, podíamos conversar c/ o velho senhor Nikkei da mesma forma que podíamos encontrar aquela menina ocidental aspirante a Gyaru, o lugar sempre foi – e sempre será – uma verdadeira bombarda sensorial e sinestésica: cheiros, cores, sons e tudo o mais que tecnologia e corpo puderem provir, você.vai.encontrar.lá.
Ultimamente, porem, eu tenho percebido uma coisa, que na falta de palavra para definir melhor, é triste, nas últimas vezes que freqüentei o bairro pude notar que a praça estava vazia, mesmo para um fim de semana, e que, por mais estúpido que pareça, o motivo era uma pequena divisa, daquelas faixas que organiza fila pro cinema.
Ela se estendia de um canto para o outro, nos dois lados de acesso e embora existissem algumas pessoas na escada, o lugar estava deserto, imagine um espaço vazio em meio toda a densidade do bairro, é bizarro, não?
Questionei algumas pessoas – inclusive um segurança do metrô – e as alegações chegam a ser patéticas, depredações e lixo? Não muito diferente daquele produzido pela própria feira tradicional, orgulho do bairro. Drogas e Prostituição? Vale lembrar que a praça do metrô é próxima da Sé.
Claro, mais um pequeno entre tantos episódios da política higienista que a dobradinha PSDB/DEM tem promovido, me preocupa a natureza cívica dessa medida, já que a praça é um ambiente público, de acesso a todos e o que aquela faixa simboliza contradiz os mais básicos dos valores cívicos.
Em retrospectiva, não é a primeira vez que uma merda dessas acontece, vale lembrar no passado, c/ o Governo do Getúlio Vargas, banindo publicações e oratórias em idioma japonês, ou atualmente, onde senadores comandam o esquema de concessões em mídia, é natural ver este desdém em relação a proliferações culturais não planejadas.
O que eu sugiro? É que as pessoas insatisfeitas com essa medida, pulem, passem por baixo, ou simplesmente ignorem a maldita faixa, que no final das contas, não é nada, aquela praça – e qualquer outro maldito lugar – é de todo e qualquer cidadão paulistano e não será mero pudor organizacional que vai impedir a erupção cultural que aquele bairro promove em sua essência.